por Jenifer Severo
Desde muito cedo eu te conheço, mas não por nome. Desde muito
pequena, quando eu ficava olhando fixamente para uma parede branca
perdida em meio a desenhos que minha mente projetava a partir de um
buraquinho no concreto, com o intuito de adiar alguma tarefa solicitada
pela minha mãe, ou quando insistia em jogar videogame quando deveria
estar fazendo o dever de casa. Você está na minha vida há muito tempo e,
aparentemente, não sairá dela tão fácil. Lembra de todas as vezes que a
letargia tomou conta do meu corpo, se alastrou pela minha alma me dando
a sensação de preguiça e inutilidade? Culpa sua, que tem o dom único de
me fazer sentir bem por longos períodos mas cair abruptamente num poço
de arrependimento e ressaca moral logo depois. Nossa relação é viciante,
porém nada saudável.
Às vezes eu finjo ser uma adulta capaz de assumir o controle da
própria vida, finjo anotar os compromissos na minha agenda mental,
prometo que as tarefas da faculdade serão feitas logo no início do fim
de semana. Às vezes acordo e penso: chega! Vou dar um fim nessa relação
que tanto me consome. Mas logo sou surpreendida por você que me seduz
com um fim de semana ensolarado, com um passeio inesperado, com um texto
do Duvivier ou os primeiros episódios de F.R.I.E.N.D.S, de modo que,
aquela mulher obstinada e responsável do início dá lugar a uma garota
inútil e irresponsável, que adia o que deveria ser inadiável.
Você me tem nas mãos. Parece que fica arquitetando formas de me
dispersar, me tirar de órbita e me jogar na mais profunda inércia – e o
faz, sem prévio aviso. Como consequência, muitas vezes arrisco-me a
dormir tarde fazendo absolutamente nada, acordo morta no outro dia e sou
surpreendida pela retomada das atividades normais do meu cérebro, que
subitamente sai do estado de submissão e me lembra de todas as tarefas
atrasadas ou em cima da hora que terei que encarar, sem fazer cara feia.
Você sempre consegue o que quer, e eu sempre me rendo aos seus
galanteios.
Percebi que não sou a única na sua vida. Notei que você flerta com
muitos dos meus amigos. Uns conseguem ser mais fortes do que eu e às
vezes te mandam embora, mesmo que temporariamente; outros te amam
incondicionalmente e já estão conformados com essa relação confortável.
Porém, a grande maioria concorda que a longo prazo você acabará se
tornando um atraso de vida. E é exatamente isso o que você quer: atrasar
a vida alheia e reafirmar o seu poder sobre esse bicho ininteligível e
facilmente manipulável que é o ser humano.
Tenho plena consciência que o nosso relacionamento precisa acabar o
quanto antes, a fim de que eu possa regularizar a minha vida, tomar as
rédeas da situação, respirar aliviada. Mas enquanto escrevo este texto
eu checo o Whatsapp, vou ao banheiro, arrumo o cabelo, sirvo mais um
chimarrão e me distraio com os pôsteres na parede. De repente, me pego
num abismo chamado Wikipédia e vou de Hitchcock a Beach boys em menos de
dez minutos. Sinto a sua presença em cada passo que dou, em cada ação
que eu executo, por mais simples que seja. Mas acabou - pelo menos até
sair outro texto do Duvivier na Folha ou eu for contemplada com um fim
de semana ensolarado e convidativo. Céu limpo e sol para sábado, segundo
a previsão que acabei de ler.